Especialista alerta que a crise humanitária e ambiental exige melhores estruturas de emergência, com proteção e alimentação a desabrigados até serviços de saúde e programas de reassentamento

O que você faria se, de um dia para o outro, tivesse que abandonar a própria casa? Para milhões de pessoas nas Américas, essa pergunta deixou de ser hipótese e virou realidade. A escalada dos desastres tem modificado profundamente a paisagem de cidades inteiras em cenários de incerteza, onde a única saída é buscar refúgio em abrigos temporários.
Os números contam a dimensão da crise humanitária e ambiental em curso. No ano passado, o mundo registrou 83,4 milhões de pessoas deslocadas internamente, segundo a Organização Internacional para Migrações (OIM) e a plataforma PreventionWeb. Desse total, 9,8 milhões tiveram que deixar suas casas em 94 países em razão de desastres naturais como enchentes, secas, queimadas e furacões.
Nas Américas, o cenário foi particularmente crítico. O Global Report on Internal Displacement 2025 (IDMC) aponta 14,5 milhões de deslocamentos internos por desastres apenas no último ano. Os Estados Unidos lideraram com 11 milhões de casos, principalmente por evacuações em decorrência de furacões.
O Brasil também figura nesse mapa de vulnerabilidade. Embora os números de deslocamentos internos no país não estejam detalhados no relatório global, outros dados ambientais chamam atenção. Até setembro de 2024, a América do Sul acumulou 346.112 focos de queimadas, de acordo com levantamento da Reuters. O Brasil foi responsável por 62.131 ocorrências, que devastaram aproximadamente 46 milhões de hectares, segundo registros compilados pela Wikipedia a partir de dados oficiais.
Enquanto o Brasil encara um cenário climático cada vez mais extremo, os desastres ambientais e tecnológicos deixam marcas profundas na vida de milhares de pessoas. Em 2024, as enchentes no Rio Grande do Sul obrigaram cerca de 775 mil pessoas a deixarem temporariamente suas casas.
Esses números recordes ganham dimensão quando comparados a eventos recentes de desastre tecnológico, como o rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, em 2019. Na ocasião, cerca de 1.000 pessoas foram deslocadas de forma permanente, enquanto 270 vidas foram perdidas, segundo dados da Defesa Civil de Minas Gerais e da própria Vale. Brumadinho se tornou um marco sombrio da vulnerabilidade das comunidades diante de falhas humanas e estruturais, enquanto as enchentes no Sul refletem a urgência de políticas públicas frente às mudanças climáticas.
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| Ana Clara Fonseca: "não basta garantir teto e comida" |
Ana Clara Fonseca, membro sênior da IEEE, da International Society of Emergency Manners e voluntária do time de disaster relief da Red Cross Utah (USA), explica um pouco melhor sobre as questões éticas e humanitárias envolvidas na questão dos abrigos.
Criadora de um protocolo inovador que integra gestão de abrigos, distribuição de suprimentos e coordenação multissetorial com base no 5W2H, ela coordenou operações em crises como as enchentes no Rio Grande do Sul, a pandemia de COVID-19 e os desastres de Mariana e Brumadinho. Além disso, Ana idealizou o primeiro curso de especialização em Logística Humanitária e de Desastres do Brasil (Unyleya) e acumula mais de 3.000 horas de formação. Sua abordagem prioriza eficiência, proteção a grupos vulneráveis e integração de dados para tomada de decisão.
Com liderança em projetos como Justiceiras e Renova Mulher, impactou diretamente mais de 17 mil mulheres com suporte jurídico, psicológico e capacitação profissional, ela explica que, por trás das estatísticas, estão histórias de famílias que precisam recomeçar. E é nesse ponto que entram os abrigos temporários, que, para muitos, se tornam a nova “casa”, mesmo que provisória. “Cada abrigo é uma pequena cidade”, resume Ana Clara, advogada especializada em questões humanitárias. “Não basta garantir teto e comida. É preciso assegurar direitos, dignidade e proteção a quem perdeu tudo.”
A vida em abrigos possui três estágios de permanência. Segundo Ana Clara, os abrigos se organizam em diferentes etapas:
Curto prazo – Nos primeiros dias após o desastre, a prioridade é salvar vidas. Ginásios, escolas e centros comunitários se transformam em refúgios improvisados, oferecendo colchões, água, comida e banheiro.
Médio prazo – Quando semanas viram meses e o retorno não é possível, a estrutura precisa evoluir: divisão por faixas etárias, serviços de saúde contínuos e apoio psicossocial.
Longo prazo – Para quem perdeu tudo, surgem alternativas como aluguel social, reassentamentos e programas de reconstrução, onde a rotina de escola e trabalho deve ser reintegrada.
Nos bastidores desses espaços, os desafios se multiplicam. Crianças precisam de ambientes protegidos, acompanhamento psicológico e acesso imediato à escola. Mulheres necessitam de políticas específicas contra violência e abuso. Idosos, pessoas com deficiência e doentes crônicos requerem infraestrutura adaptada.
“A separação por idade e gênero, a criação de canais de denúncia acessíveis e a oferta de medicamentos, fraldas e absorventes são medidas básicas, mas que fazem toda a diferença”, explica Ana Clara Fonseca.
A advogada destaca ainda que a gestão dos abrigos envolve Defesa Civil, órgãos de assistência social e saúde, Cruz Vermelha e entidades religiosas, em uma articulação que vai do cadastramento até o suporte espiritual. “É fundamental ter regras claras de convivência, horários de silêncio, limpeza e uso das áreas comuns, que ajudam a manter a ordem e o bem-estar coletivo".
Ainda segundo a especialista, a frequência de enchentes, queimadas e secas indica que a questão deixou de ser episódica. Os abrigos, antes pensados como resposta emergencial, precisam ser integrados a uma política pública estruturada de enfrentamento às mudanças climáticas e aos impactos sociais. “Por trás de cada número, há famílias tentando recomeçar”, lembra Ana Clara Fonseca. “É papel do poder público, das organizações humanitárias e da sociedade garantir que esse recomeço seja digno. No final das contas, o maior desafio não é apenas reconstruir casas, mas reconstruir vidas”, conclui.
Referências:


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