O livro “História de Sobradinho” destaca a cidade como o coração de campeões que fizeram do esporte um legado de superação e orgulho coletivo.

Entre ruas de terra vermelha, brincadeiras de rua e um céu sempre aberto, Sobradinho forjou um dos mais belos capítulos do atletismo brasileiro. Da poeira das quadras às pistas do mundo, a cidade se tornou sinônimo de resistência, disciplina e talento. Agora, essa trajetória ganha registro definitivo nas páginas do livro “História de Sobradinho”, que será lançado pelo Instituto Latinoamerica, com apoio da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do DF e produção da LL Produções. A publicação vai resgatar memórias da cidade, incluindo o legado esportivo que colocou o nome de Sobradinho no mapa do atletismo mundial.
No coração dessa história está o Centro de Atletismo de Sobradinho (Caso), criado em 1990 pelo professor João Evangelista de Sena Bonfim, 69 anos, e sua esposa, Gianetti Oliveira de Sena Bonfim. O projeto nasceu da vontade de transformar vidas por meio do esporte e, três décadas depois, se transformou em símbolo de formação, cidadania e superação. “Nosso trabalho é um legado, e o futuro está sendo preparado”, diz o treinador João, que há mais de 30 anos descobre talentos entre crianças e jovens da cidade.
O Caso é um celeiro de campeões, são mais de 700 medalhas nacionais e internacionais, 22 títulos sul-americanos e 61 campeões brasileiros formados. Desde 2021, o centro figura entre as cinco melhores equipes do país, conquistando destaque no Troféu Brasil e no Campeonato Brasileiro Sub-18. “O atletismo é um esporte de gente simples, humilde, mas de alma grande. É o nosso orgulho”, resume Sena, com a serenidade de quem viu a cidade se transformar com seus atletas.
O mestre das pistas
Nascido no Piauí e criado em Sobradinho, João Sena, educador físico, chegou a Brasília em 1967, com 11 anos, quando a cidade ainda se construía entre barracos e poeiras. A paixão pelo esporte surgiu por acaso, quando viu o cartaz de um curso de Educação Física durante uma tempestade. Dali em diante, nunca mais parou de correr atrás de sonhos, os dele e os dos outros.
Foi nas escolas públicas da cidade, como o Centro Educacional 02 e o Centro de Ensino Médio 01 - CEM 01, que Sena descobriu seus primeiros talentos, Gianetti, Carmen de Oliveira e Alexandre Coutinho. Sob seu comando, os atletas sobradinhenses quebraram mais de 30 recordes brasileiros. Carmen, por exemplo, seria recordista sul-americana 18 vezes.
O professor, que ainda treina atletas diariamente, fala com brilho nos olhos do projeto que fundou ao lado da esposa. “Mesmo aposentado, sigo lutando para formar campeões. Mas mais do que isso, quero formar cidadãos”, declara Sena.

Nascida e criada em Sobradinho, Gianetti Oliveira de Sena Bonfim viu o esporte transformar sua vida. “Eu era moleca de rua. Nunca gostei de boneca, queria soltar pipa e jogar bola”, lembra. O encontro com o professor João Sena, ainda nos tempos de escola, mudou o rumo da sua história.
Mesmo enfrentando resistência da família, que via o atletismo com desconfiança, ela insistiu. Treinava escondido, antes das aulas, em pistas improvisadas de brita e chão batido. A dedicação deu um bom resultado, Gianetti tornou-se oito vezes campeã brasileira de marcha atlética, conquistou recordes nacionais e, em 1996, escreveu o nome de Sobradinho na história ao vencer uma competição internacional na Colômbia, a primeira brasileira a fazê-lo.
“Quando subi no pódio em Medellín, percebi que estava representando muito mais que a mim mesma. Era Sobradinho lá fora”, lembra, emocionada. Hoje, Gianetti se dedica à formação de novos atletas no Caso. “Trabalhamos com crianças de comunidades carentes, damos lanche, material, oportunidade. É uma forma de devolver o que o esporte nos deu.”
A marcha de um campeão
Filho do casal João e Gianetti, Caio Oliveira de Sousa Bonfim, 34 anos, cresceu respirando atletismo. Desde pequeno, acompanhava os treinos do pai no Estádio Agostinho Lima e via a mãe subir ao pódio. O esporte sempre esteve em casa e, mesmo antes de sonhar com medalhas, ele já aprendia o que significava disciplina, resiliência e amor por Sobradinho.
Ainda na infância, Caio enfrentou desafios que poderiam ter interrompido qualquer caminhada. Vítima de meningite e diagnosticado com síndrome de Blount, uma deformidade nas pernas. Ele precisou passar por uma cirurgia delicada. “O médico disse que teria que cortar a tíbia e a fíbula. Fiquei de gesso até o quadril, e brinco que Deus me treinou desde cedo para a marcha atlética, porque eu tinha que andar com aquele gesso pesado”, recorda.
A superação virou marca de sua trajetória. Mas, além das barreiras físicas, o jovem atleta também precisou driblar o preconceito. “Quando eu treinava nas ruas, muita gente zombava, imitava meu jeito de marchar, jogavam em cima dos atletas”, relembra Caio. Hoje, os aplausos ecoam em estádios do mundo inteiro. Tornou-se um dos maiores marchadores da história do Brasil. São 14 títulos nacionais, quatro medalhas em Mundiais, quatro participações olímpicas e a consagração com a medalha de prata nas Olimpíadas de Paris, em 2024.
Mesmo com tamanho reconhecimento, o atleta segue firme às suas origens. “Eu poderia estar em qualquer lugar do mundo, mas escolhi ficar aqui. Sobradinho é a minha base, o meu orgulho”, afirma. A rotina no mesmo estádio onde começou reforça o vínculo com a cidade. “Quanto mais eu viajava, mais queria voltar. Aqui é o lugar onde tudo começou, onde aprendi que o verdadeiro valor da vitória está em nunca desistir”, desabafa Bonfim.
Caio fala com emoção sobre ver novas gerações se inspirando nele. “Quanto mais eu viajava, mais queria voltar. Hoje, eu fico feliz de ver os meninos marchando nas ruas sem medo. Isso é uma medalha que não está na prateleira”, diz o atleta, emocionado. “Sobradinho é onde eu nasci, fui criado, casei e tenho meus filhos. Eu explorei essa cidade com as pernas. E para as novas gerações, eu deixo um pedido, que continuem escrevendo os próximos capítulos dessa história com amor e orgulho pelo nosso lugar”, finaliza Bonfim.
Reforma do Estádio Augustinho Lima
O Estádio Augustinho Lima, inaugurado em 30 de abril de 1978 e símbolo esportivo de Sobradinho, passará por uma modernização completa. Nomeado em homenagem a Augustinho Pires de Lima, jovem jornalista da região que morreu em 1976, o espaço é a casa do Sobradinho Esporte Clube e um dos principais equipamentos esportivos da região administrativa.
No dia (11/11), o governador Ibaneis Rocha (MDB) assinou a ordem de serviço para a reforma total do estádio. A solenidade contou com a presença do atleta olímpico e morador da cidade Caio Bonfim, referência do atletismo brasileiro, que destacou a importância da obra para o desenvolvimento do esporte local.
Com investimento superior a R$ 4,4 milhões, provenientes do Fundo de Apoio ao Esporte (FAE), o projeto contempla duas frentes principais: a troca completa do gramado e a implantação de uma nova pista de atletismo de padrão internacional, reforçando a vocação do espaço para receber tanto o futebol quanto outras modalidades esportivas.
A primeira etapa, conduzida pela CAP Paisagismo, terá aporte de R$ 1,8 milhão e prazo de cinco meses. O trabalho inclui nova drenagem, irrigação automatizada e a instalação do gramado do tipo Bermuda, utilizado em arenas profissionais pela resistência e qualidade técnica. A segunda fase, sob responsabilidade da empresa Playpiso Pisos Esportivos, receberá R$ 2,6 milhões para a construção de uma pista sintética moderna, feita em borracha pré-fabricada com acabamento em poliuretano, assegurando mais conforto, segurança e desempenho para atletas de alto rendimento e praticantes da região.
Da poeira ao pódio mundial
Outra estrela nascida em Sobradinho, Carmen de Oliveira foi uma das maiores fundistas do país. Mãe aos 15 anos, começou a correr por acaso, em uma competição escolar. O olhar atento de João Sena mudou sua trajetória. “Você tem potencial”, ele disse – e estava certo. Carmen rompeu fronteiras e preconceitos, correndo com a mesma força com que enfrentava as dificuldades da vida. Representou o Brasil em duas Olimpíadas, venceu provas internacionais, conquistou o coração dos brasileiros e eternizou seu nome ao vencer a Corrida Internacional de São Silvestre.
“Quando venci a São Silvestre, parece que nada brilhava tanto. Foi o meu ponto final. Tinha tocado os meus limites”, recorda. Hoje, ela defende o esporte como ferramenta de transformação social. “Precisamos de escolas com quadras, pistas, professores. O esporte não é um atalho, é parte da educação”, comenta.
Carmen encerrou a carreira em 1997, patrocinada pelo Banco do Brasil - o patrocínio individual mais duradouro do país na época - consciente de que havia ido o mais longe possível. A menina que um dia correu descalça pelas ruas de Sobradinho tornou-se símbolo de determinação e superação, inspirando gerações de atletas.
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Sobradinho exporta talento: a maratonista Solange Cordeiro
Solange Cordeiro de Souza, a “Solanginha”, nasceu em Sobradinho e desde a adolescência, descobriu no atletismo sua grande paixão. Inspirada pela irmã Sandra e apoiada pelo técnico Sena e sua esposa Gianetti, iniciou os treinos aos 14 anos, participando dos Jogos Noturnos do Corujão. Com apenas 15 anos venceu sua primeira corrida de rua e conquistou o ouro nos Jogos Escolares Brasileiros (JEB’s), nos 3.000 metros.
Determinada, colecionou títulos expressivos: campeã dos JEB’s (1985), da Corrida Ecológica de Brasília (1984) e múltiplas vezes vencedora da Corrida de Reis; vice-campeã (1992) e campeã da Maratona de Brasília (1994); recordista da Meia Maratona da Argentina (1994); e 13ª colocada na Maratona de Boston (1996), conquistando o índice para as Olimpíadas de Atlanta. Também brilhou em quatro Mundiais de Cross Country e defendeu grandes clubes brasileiros.
Vivendo há 25 anos no Colorado (EUA), onde atua como assistente de dentista infantil, Solange segue ligada ao esporte, orientando jovens atletas e inspirando novas gerações. Mãe de Gabriel Cordeiro Fendel, que também seguiu os passos nas pistas, ela reconhece que o atletismo foi mais que uma carreira: foi um caminho de autodescoberta e superação. “O atletismo me levou para o mundo, mas meu coração sempre estará no Brasil, nas ruas e nas manhãs de Sobradinho.”
Com o lançamento do livro História de Sobradinho, esse legado ganha páginas e vozes. Serão versões acessíveis em braille e audiolivro, distribuídas gratuitamente em escolas, bibliotecas e espaços culturais. Um registro que garante que a memória da cidade e dos seus atletas continue inspirando gerações.

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